TCO: UM NOVO DESAFIO QUE SE APRESENTA PARA O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

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Em julgamento no plenário virtual do Supremo Tribunal Federal, encerrado no dia 27 de junho de 2020, na ADI n° 3807, impetrada pela Associação de Delegados de Polícia do Brasil – ADEPOL DO BRASIL, tendo como Relatora a Ministra Cármen Lúcia, os Ministros por maioria decidiram pela constitucionalidade do art. 48, § 3º, da Lei n. 11.343/2006.

O dispositivo legal impugnado confere ao Juiz de Direito a possibilidade de lavratura do TCO nas condutas previstas no art. 28 da citada lei, situação que, em tese, viola o sistema acusatório à luz das recentes alterações do Código de Processo Penal pelo Pacote Anti-Crime.

A fim de superar esse problema, a Ministra Cármen Lúcia fundamentou sua argumentação em duas premissas. Primeiro, defendeu que “termo circunstanciado não é procedimento investigativo, mas peça informativa com descrição detalhada do fato e as declarações do condutor do flagrante e do autor do fato”, já que se apresentaria tal ato como um mero boletim de ocorrência, uma mera descrição do fato. Como consequência, fixou a segunda premissa: termo circunstanciado “não é função privativa de polícia judiciária”, de modo que não existe risco à imparcialidade do julgador.

O Ministro Marco Aurélio abriu divergência, mas foi voto vencido. Nas palavras do Ministro, o termo circunstanciado possui “unívoca a feição de procedimento investigatório, manifestação do poder de polícia judiciária, cumprindo o papel de inquérito e servindo à deflagração de denúncia”. Citou, ainda, a Lei n° 12.830/13 como fundamento para o seu raciocínio: “se dúvidas ainda pudessem existir, surgiriam afastadas ante a edição da Lei nº 12.830, de 20 de junho de 2013, cujo artigo 2º, parágrafo 1º, versa a investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia”.

Correta a posição do Ministro Marco Aurélio, uma vez que existe, sem qualquer grau de dúvida, atividade de investigação e atribuição típica de Delegado de Polícia. Não se pode desejar a automação de um procedimento que tem repercussões negativas na vida das pessoas, com repercussão nos direitos fundamentais daqueles a quem o procedimento é direcionado:

“A formalização de um termo circunstanciado não pode ser decorrência automática da notícia de uma infração penal de menor potencial ofensivo. Deve a autoridade policial responsável por sua confecção analisar valorativamente uma série de aspectos jurídicos, a saber, entre outros: se o fato praticado configura um crime ou uma contravenção; se o crime é de menor potencial ofensivo; se a prova da materialidade delitiva requer exame pericial; em caso positivo, deverá requisitar ao órgão técnico competente; deve averiguar se o crime é de ação penal pública condicionada à representação ou privada; em caso afirmativo, deverá tomar por termo a representação ou o requerimento do ofendido, pois são condições objetivas de procedibilidade; deverá conhecer normas de competência, para fins de correto encaminhamento ao Juizado competente; em caso de flagrante delito, recusando-se o conduzido a comparecer imediatamente ao Juizado ou a assinar o termo de compromisso de comparecimento, deverá ser lavrado o respectivo auto, com arbitramento de fiança; deverá analisar se se trata de conexão, de concurso formal, material ou de crime continuado, para saber corretamente que procedimento formalizar; deve saber que nos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independente da pena máxima cominada, não será aplicada a Lei nº 9.099/1995; deve saber que no caso de lesão corporal culposa no trânsito na forma simples, quando praticada nas circunstâncias do art. 291, § 1º do CTB será instaurado inquérito policial, mesmo sendo de menor potencial ofensivo; sendo complexo o caso, deverá ser instaurado inquérito policial; deve ser competente para realizar as diligências essenciais para o oferecimento da denúncia, em caso de devolução, pelo representante do Ministério Público; além de outras medidas que poderíamos aqui elencar.” (SANTOS, Cleopas Isaías; ZANOTTI, Bruno Taufner. Delegado de Polícia em Ação: Teoria e Prática no Estado Democrático de Direito. 6 ed. Bahia: Juspodivm, 2019)

De todo modo, esse não foi o entendimento da maioria do Supremo Tribunal Federal. Ainda assim, as questões apontadas acima e os problemas daí decorrentes são mantidos – e potencializados – à luz da nova jurisprudência. Problemas de ordem prática surgem nesse novo contexto. Na linha desse novo entendimento, as Policias Civis e Federal não ficarão com a tarefa de complementação de diligências e muito menos com a custódia dos respectivos objetos apreendidos. Afinal, se outros órgãos possuem atribuição para a lavratura do TCO – e tal procedimento não tem natureza investigativa – cabe aos órgãos que deflagraram o TCO presidir tal ato até a sua efetiva conclusão. Não só essas questões, mas inúmeras outras já são visíveis, de modo que se faz necessária uma nova legislação com as diretrizes para os problemas e lacunas ainda pendentes.

Refletir e rediscutir o modelo legal e constitucional do sistema representa o próximo e necessário passo. Quando a interpretação passa a pautar toda a forma de tomada de decisão, o sistema constitucional passa a ser fragilizado, já que decisões contrárias ao texto constitucional começam a se apresentar como uma prática comum, inclusive aplaudidas por muitos. Pode-se citar, por exemplo, a mutação constitucional do art. 52, X, da Constituição que contraria o próprio texto constitucional, ou mesmo a criminalização de condutas com base em decisão do Supremo Tribunal Federal sem tipificação legal específica.

Para além do decisionismo judicial e da insegurança que isso representa, em especial pela possibilidade de mudança de entendimento, o tema deve passar por um debate público, com uma pauta no Congresso Nacional, verticalizando a temática tratada no Supremo Tribunal Federal, inclusive com análise de como tudo é trabalhado no âmbito internacional.

De forma mais incisiva, o atual modelo de justiça criminal, que tinha no TCO o seu ponto de partida, simplesmente não mais existe, com nítida violação do sistema acusatório e do art. 144 da Constituição Federal. O desafio é repensar esse modelo, sem a necessidade de fazer uso de puxadinhos hermenêuticos, a fim de que o texto constitucional não seja uma mera referência do que ele já tentou ser um dia!