JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO: breve abordagem acerca do sétimo Princípio de Chicago e a democracia brasileira no que diz respeito ao exercício das atribuições dos órgãos policiais

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JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO: breve abordagem acerca do sétimo Princípio de Chicago e a democracia brasileira no que diz respeito ao exercício das atribuições dos órgãos policiais

Eujecio Coutrim Lima Filho[1]

RESUMO

O presente estudo visa trazer uma ideia geral sobre Justiça de Transição após períodos violadores de direitos humanos, como regimes militares, com o objetivo de restabelecer a paz, a confiança, a governabilidade e a democracia. Tem-se o dever estatal com essa justiça de reconciliação não apenas como resposta a regimes passados, mas também como correção de atuais medidas arbitrárias. Sobre o enfoque ora dado ao tema, tem-se a importância dos Princípios de Chicago, especificamente o ponto sete no que diz respeito ao dever dos Estados apoiar reforma institucional do Estado de Direito para restaurar confiança do público, promover os direitos fundamentais e de apoio boa governança. Nesta direção, segue análise das atuais atribuições constitucionais dos órgãos policiais brasileiro após o período de ditadura militar compreendido entre 1964 e 1985. Por fim, destaca-se a necessidade de concretização dos direitos humanos por parte dos órgãos de segurança pública e do estrito cumprimento às atribuições constitucionais, especialmente em relação a atos limitativos de liberdades individuais.

1. Princípios de Chicago e Justiça de Transição

Os princípios de Chicago sobre justiça pós-conflito surgiram entre os anos de 1997 e 2003, após consultas, reuniões e debates entre a comunidade jurídica, religiosa e outros setores sociais, tendo como objetivo a superação de atrocidades decorrentes, especialmente, de guerras e regimes autoritários. Trata-se de compromisso com a verdade, a paz e a reconciliação após graves eventos violadores de direitos humanos (genocídio, tortura, desaparecimentos etc.) e direito humanitário (BASSIOUNI, 2007). São medidas penais e não-penais que devem ser tomadas na reestruturação e estabelecimento do Estado Democrático de Direito (JAPIASSU; MIGUENS, 2013).

O enfrentamento aberto ao legado da violência é essencial para alcançar a paz, a reconciliação e prevenir futura vitimização. Os princípios orientadores podem ajudar a estabelecer uma linguagem clara e discutir a justiça pós-conflito (justiça de transição, estratégias de combate à impunidade, construção da paz ou reconstrução pós-conflito). Com foco na vítima, e não nos conflitos, como forma de melhorar a concepção para enfrentar o sofrimento humano após o período de subversão, trazem significativa mudança na política internacional de paz, segurança e reconstrução nacional e uma importante fase na evolução do movimento global de proteção e defesa dos direitos humanos. Baseia-se no entendimento de que a estabilidade doméstica, a segurança e governança[2] democrática após as atrocidades são reforçados por um compromisso com a justiça e a responsabilidade (BASSIOUNI, 2007). 

Assim, a justiça de transição surge como um conjunto de medidas legais e políticas que devem ser adotadas como compensação ao período de maciça violação de direitos humanos. De tal modo, fornece às vítimas o reconhecimento dos seus direitos, promovendo a confiança pública e reforçando o Estado de Direito. Trata-se de um processo multifacetado e interdisciplinar que vai além de uma abordagem jurídica formal, implementando uma consciência social, cultural histórica e política[3] (SERSALE DI CERISANO, 2013).

As raízes intelectuais da justiça pós-conflito podem ser atribuídas ao período pós Primeira Guerra Mundial, quando a emergente comunidade internacional começou a considerar o valor da busca de justiça no rescaldo do conflito, apesar de tomar pouca substância. Após a Segunda Guerra Mundial, a comunidade internacional estabeleceu instituições da justiça pós-conflito, incluindo os Tribunais Militares Internacionais em Nuremberg e Tóquio e apoiou acusações relacionadas com crimes de guerra na Europa e na Ásia. Estas iniciativas estavam ligadas ao nascimento do moderno sistema de direitos, a criação das Nações Unidas e a ampla aceitação da Declaração Universal dos Direitos Humanos. A partir de meados dos anos oitenta, houve um crescente interesse pela justiça pós-conflito com uma série de transições políticas de regimes autoritários a regimes democráticos (BASSIOUNI, 2007).

Comissões de verdade, políticas de reparação e mecanismos de memorialização, muitas vezes motivada pela pressão popular, pela sociedade civil e pelos grupos de direitos humanos. Na Europa Oriental e Central, os governos criaram iniciativas envolvendo debate público, memorialização, abertura de arquivos de segurança e sanções administrativas (BASSIOUNI, 2007).

No período pós-conflito e autoritário é possível constatar nações com infraestrutura desmoronada, com presença de grupos armados, população traumatizada, economia devastada, pobreza endêmica e governo de transição com recursos limitados. Portanto, uma abordagem séria da justiça pós-conflito exige um equilíbrio entre as ações e o reconhecimento das limitações práticas e políticas que caracterizam contextos de transição. Deve haver um equilíbrio entre a justiça e a reconciliação. Assim, frequentemente, a justiça é sacrificada em razão da paz e reconciliação, favorecendo os processos de verdade em detrimento ao processo penal que teria também um viés vingativo (SERSALE DI CERISANO, 2013).

A justiça requer vontade política, recursos e compromissos de longo prazo. Nessa direção, a obra de Bassiouni (2007) organiza os Princípios de Chicago sobre Justiça pós-conflito[4]. No que diz respeito ao sétimo princípio, objeto da análise ora realizada, especialmente no tocante à atuação das policias na concretização e obediência aos direitos humanos, tem-se que os Estados devem promover reformas institucionais no sentido de apoiarem o Estado de Direito, devolvendo a confiança pública, e um sistema de proteção de direitos fundamentais[5] (JAPIASSU; MIGUENS, 2013). Portanto, cuida principalmente da reforma das instituições, incluindo a reforma dos setores de segurança e apoio à democratização e defesa dos direitos humanos fundamentais (SERSALE DI CERISANO, 2013).

Os Estados devem assegurar que os serviços militares, de inteligência e as forças de segurança nacionais sejam controlados com mecanismos e instituições eficazes de supervisão civil, certificando-se de que essas instituições respeitem os princípios básicos dos direitos humanos e do direito humanitário. Essas instituições devem ser regulamentadas pelo ordenamento local com claro destaque de se tratarem de órgãos apolíticos encarregados de defenderem a soberania do Estado e a integridade territorial (BASSIOUNI, 2007). Os tribunais militares, os serviços de inteligência e as forças militares não podem ser envolvidas em restrição de direitos de civis (SERSALE DI CERISANO, 2013).

Os Estados devem ratificar as convenções internacionais acerca da defesa e proteção dos direitos humanos. Devem haver alterações no sistema constitucional (e infraconstitucional) no sentido de garantir o respeito aos direitos humanos e direito humanitário. Igualmente, devem adotar medidas necessárias para garantir a independência, imparcialidade e funcionamento eficaz do sistema judicial, de acordo com os padrões internacionais do devido processo (BASSIOUNI, 2007).

Como monitoramentos dos direitos humanos, inclusive em ações preventivas de solução de conflitos, devem ser criadas ouvidorias, comissões e outros mecanismos capazes de protegerem os direitos fundamentais. Todos os funcionários públicos, especialmente aqueles ligados à prestação do serviço militar, devem receber formação continua sobre direitos humanos. Os Estados devem promover a observância dos códigos de condutas para todos os funcionários públicos (BASSIOUNI, 2007).

2. Aspectos relevantes do contexto brasileiro

A história brasileira registra diferentes momentos, como a escravidão negra e períodos de governos de exceção, em que condutas violadoras de direitos humanos foram acobertadas pelo manto estatal[6]. O período mais recente envolve a ditadura militar que, entre os anos de 1964 e 1985, foi responsável pelo cometimento de atos contemporaneamente classificados como crimes contra a humanidade. Portanto, assim como ocorreu com outros países sul-americanos, a exemplo da Argentina[7], o período pós-regime ditatorial demanda a concretização da justiça, a responsabilização penal pelas graves violações aos direitos humanos, a restauração e a manutenção da paz.

 Japiassu e Miguens (2013) ofertam uma visão panorâmica acerca do contexto histórico do período de ditadura militar no Brasil[8]. Verifica-se que, semelhante ao ocorrido na Argentina, determinados setores hegemônicos da sociedade e o oficialato militar travou acentuado combate contra a atividade política de esquerda, considerando como inimigo interno a ser exterminado. Nessa conjuntura seguiram os governos militares entre os anos de 1964 e 1985 marcados pela supressão e violação de direitos humanos.

Nesta direção, como visto, a justiça de transição ou justiça pós-conflito deve ser considerada como a passagem de um contexto nacional de conflito armado ou de presença de regimes autoritários para uma conjuntura harmônica ao Estado Democrático de Direito com legitimação da ordem jurídica, reconstrução nacional, reconciliação e resolução de conflitos. Versa a concretização da justiça nas sociedades em reconstrução após violações de direitos humanos, é a resposta estatal por meio da responsabilização das violações ocorridas[9], da reparação das vítimas, promoção da paz, reconciliação e democratização(JAPIASSU; MIGUENS, 2013, p. 24).

O processo de transição política brasileiro foi executado pelo próprio regime militar autoritário, a sociedade civil e o Estado de Direito surgido não participaram efetivamente da agenda relativa às medidas transacionais que foram planejadas pelo próprio regime ditador. Consequentemente, dentre as medidas, não se falou da responsabilização penal dos agentes estatais cometedores de graves atrocidades. Assim, o foco deve ser dirigido à reparação das vítimas como ponto central à justiça de transição brasileira (MADEIRA; PEREIRA; VALE, 2015).

Portanto, em relação ao caso brasileiro, o ministro Marco Aurélio destacou que a punição dos crimes de tortura cometidos na ditadura afetaria a segurança jurídica e o avanço cultural, seria uma retroação penal. Nesta linha, restou improvida a ADPF 153 que objetivava a não abrangência da Lei de Anistia a atrocidades como a tortura e o desaparecimento forçado de pessoas. Contudo, apesar de não ter adotado a totalidade das medidas sugeridas por Bassiouni, como a responsabilização penal dos agentes estatais, o Brasil aparentemente alcançou a reconciliação nacional (JAPIASSU; MIGUENS, 2013).

“Assim, pode-se dizer que a resposta brasileira às graves violações aos direitos humanos ocorridos no período de ditadura militar, basicamente disse respeito a reorganização do Estado, reintegração e reparação e, de alguma maneira, memorialização de vítimas” (JAPIASSU; MIGUENS, 2013, p. 39).

“Neste contexto, o Brasil representa uma experiência interessante, embora não tenha adotado a totalidade das medidas sugeridas por BASSIOUNI. Ao contrário, adotou medidas mais restritas e, ainda assim, parece ter alcançado a desejada reconciliação nacional. Todavia, persiste a necessidade de conhecimento pleno sobre as violações passadas, o que ainda não ocorreu” (JAPIASSU; MIGUENS, 2013, p. 41).

Até 1999, mais de dez anos de Constituição Democrática, o Brasil contava com cinco ministérios militares e uma Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República com atribuições pautadas à defesa na visão da instituição militar. A partir da formação do Ministério da Defesa com o controle civil das Forças Armadas tem-se importante aspecto referente à restauração do regime democrático (SILVA, 2010).

Diferentemente do ocorrido nos demais países sul-americanos, a transição do regime autoritário ao democrático ocorreu, no Brasil, de forma lenta com origem no próprio núcleo do governo militar. Assim, entre avanços e ameaças de retrocesso, demorou-se mais de uma década o processo de transferência do poder para o controle civil. O governo Sarney (1985-1990) foi o último em que vigoraram as regras eleitorais do período militar (SILVA, 2010).

“Dentro desta perspectiva, a criação do MD visou atender os seguintes objetivos: a) O comando inquestionável das Forças Armadas pelo chefe do Poder Executivo; b) Garantir a imparcialidade política das Forças Armadas; c) Estabelecer uma estrutura de ordenamento legal das Forças Armadas submissa ao Estado democrático; d) Qualquer decisão quanto ao emprego do poder militar teria origem exclusiva nas decisões políticas; e e) Reafirmar o caráter nacional das Forças Armadas” (SILVA, 2010, p.118).

Dá análise dos Princípios de Chicago, especialmente o princípio 7, conclui-se pela recomendação de que os serviços militares, de inteligência e as forças de segurança sejam norteados pela efetivação dos direitos humanos e humanitário, com controle civil e a clara atribuição de defender a soberania do Estado e a integridade territorial.

Atualmente as Forças Armadas são disciplinadas pelos arts. 142 e 143 da CRFB.

“Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.

3. Atribuições dos órgãos policiais brasileiros e efetivação de direitos humanos

Em relação às atribuições dos órgãos policiais, a própria Constituição Federal, ao organizar a segurança pública no art. 144, assegurou a não atuação da Polícia Militar no que tange a atos investigativos de crimes não militares, salvo no que diz respeito à atuação de polícia ostensiva e à preservação da ordem pública (art. 144, §5º). Entretanto, a atual redação do §6º destaca que as polícias militares e corpos de bombeiros militares são forças auxiliares e reserva do exército.

O texto constitucional corrobora a clássica divisão doutrinária entre a polícia administrativa e a polícia judiciária. A primeira possui caráter ostensivo e se propõe a prevenção do crime. Já a segunda, auxiliar do Poder Judiciário, possui caráter repressivo e atua na elucidação dos fatos criminosos. O sistema de segurança pública e as respectivas atribuições dos órgãos envolvidos foram claramente delineados pelo constituinte de 1988. Portanto, o funcionamento harmônico desse sistema é pressuposto à manutenção do Estado Democrático e, especialmente, à efetivação de direitos fundamentais do cidadão que muitas vezes, durante a persecução penal, colidirão com outros direitos de igual importância e poderão ser afastados no caso concreto.

Em síntese, a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública foi dirigida à Polícia Militar (art.144, §5º, CRFB); o patrulhamento ostensivo das rodovias federais coube à Polícia Rodoviária Federal (art.144, §2º, CRFB); à Polícia Civil e à Polícia Federal competiu a investigação de fatos criminosos e as funções de polícia judiciária (art.144, §§1º e 4º, CRFB). Além da função de polícia administrativa constitucionalmente prevista, a Polícia Militar possui atribuição de Polícia Judiciária Militar quanto aos crimes militares praticados por policiais militares (art. 8º do CPPM).

No que diz respeito ao estudo relacionado ao sétimo Princípio de Chicago e a realidade da polícia brasileira, cumpre tecer algumas observações sobre o 3º Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3 – Decreto 7.037 de 21 de dezembro de 2009), notadamente o eixo orientador IV que trata da segurança pública, acesso à justiça e combate à violência. O programa diz ter a missão de reorganizar a democracia brasileira, trazendo como uma das propostas a desvinculação das forças policiais das forças armadas (MINISTÉRIO DOS DIREITOS HUMANOS, 2017).

O Programa Nacional de Direitos Humanos segue orientação da ONU aos Estados membros (Convenção de Viena de 1993). São propostas de debate sugeridas ao Poder Legislativo, não se trata de lei. As duas primeiras versões foram publicadas no curso do governo do presidente Fernando Henrique Cardoso (1996 e 2002) e a terceira, no final do ano de 2009, pelo então presidente Luís Inácio Lula da Silva (MINISTÉRIO DOS DIREITOS HUMANOS, 2017).

O citado eixo orientador IV destaca que o histórico repressivo deixado pelas duas décadas de regime ditatorial e a postura violenta dos órgãos de segurança pública foram apontados como fatores que retardaram o debate da segurança pública no processo de consolidação da democracia. Ademais, a tradição institucional das policias brasileiras encontra-se em desarmonia com a moderna criminologia e ciências sociais experimentadas, há décadas, nos países desenvolvidos. Assim, aponta-se o grande distanciamento, por questões históricas, políticas e culturais, entre os temas de segurança pública e os Direitos Humanos no Brasil (Decreto 7.037/2009).

De acordo com o Decreto 7.037/2009, esse distanciamento começou a reduzir nos últimos anos. Iniciaram-se diálogos entre a sociedade civil e especialistas na área de segurança em busca da implantação de políticas públicas capazes de reduzirem os índices de violência a partir de projetos centrados na prevenção e influenciados pela cultura de paz. Entre os pontos citados como viabilizadores da agenda de reformas na área de segurança, merecem destaque:

a. Compreensão de que a noção de segurança pública é maior e mais complexa do que a noção de força de segurança;

b. Surgimento de nova geração de policiais disposta a repensar práticas e dogmas;

c. Cobrança da opinião pública;

d. Maior fiscalização sobre o Estado, resultante do processo de democratização.

Problemas policiais apontados, pelo Decreto 7.037/2009, como antigos:

“(…) a ausência de diagnósticos, de planejamento e de definição formal de metas, a desvalorização profissional dos policiais e dos agentes penitenciários, o desperdício de recursos e a consagração de privilégios dentro das instituições, as práticas de abuso de autoridade e de violência policial contra grupos vulneráveis e a corrupção dos agentes de segurança pública, demandam reformas tão urgentes quanto profundas”.

O PNDH-3 traz a questão da reforma do modelo de polícia e a importância do debate acerca do ciclo completo, enfatizando a coibição do abuso de autoridade e da violência institucional .

“Em linhas gerais, o PNDH-3 aponta para a necessidade de ampla reforma no modelo de polícia e propõe o aprofundamento do debate sobre a implantação do ciclo completo de policiamento às corporações estaduais. Prioriza transparência e participação popular, instando ao aperfeiçoamento das estatísticas e à publicação de dados, assim como à reformulação do Conselho Nacional de Segurança Pública. Contempla a prevenção da violência e da criminalidade como diretriz, ampliando o controle sobre armas de fogo e indicando a necessidade de profissionalização da investigação criminal.

Com ênfase na erradicação da tortura e na redução da letalidade policial e carcerária, confere atenção especial ao estabelecimento de procedimentos operacionais padronizados, que previnam as ocorrências de abuso de autoridade e de violência institucional, e confiram maior segurança a policiais e agentes penitenciários” (Decreto 7.037/2009).

Entre as ações programáticas do objetivo estratégico 1 (modernização do marco normativo do sistema de segurança pública) da diretriz 11 (democratização e modernização do sistema de segurança pública) do PNDH-3 tem-se: “propor alteração do texto constitucional, de modo a considerar as polícias militares não mais como forças auxiliares do Exército, mantendo-as apenas como força reserva. Responsável: Ministério da Justiça” (Decreto 7.037/2009).

Considerando-se que a investigação criminal, por si só, tem o condão de limitar direitos fundamentais, exigindo um sopesamento na aplicação das medidas, tem-se a imprescindibilidade do respeito às atribuições constitucionais no sentido de efetivar qualquer política comprometida com a observância de direitos humanos. Neste caso, como medida de efetivação de direito fundamental, forma deve ser considerada garantia (NICOLITT, 2017). Consequentemente, o desrespeito às atribuições constitucionais, especialmente aquelas ligadas a atos limitadores de liberdades individuais como é a própria essência da persecução penal, devem ser rechaçados como atentados às garantias fundamentais. Destaca-se que a fase administrativa da persecução penal (investigação criminal) também deve obediência irrestrita à garantia fundamental do devido processo (procedimento) legal (art. 5º, LIV, CRFB).

O estudo da polícia brasileira também impõe observação acerca da existência do controle externo da atividade policial exercido pelo Ministério Público nos termos do art. 129, VII, da CRFB e da Lei Complementar 75 de 1993. Tal controle, em síntese, visa verificar a eficiência da atividade policial fim no intuito de velar pelos elementos a serem destinados ao autor da ação penal e fiscalizar o cumprimento da lei, coibindo desvios e abusos.

Não obstante o sucesso brasileiro na transição democrática para o controle civil das Forças Armadas e a criação do Ministério da Defesa, registra-se que o texto constitucional considera as instituições militares estaduais como forças auxiliares e reserva do Exército (art. 144, §6º). Nessa direção, a Constituição confiou a essas instituições militares as atribuições de polícia ostensiva e a preservação da ordem pública (art. 144, §5º), bem como o papel de polícia judiciária militar (art. 144, §4º) nos crimes propriamente militares (art. 8º, CPPM).

Portanto, o uso das forças militares fora dos limites constitucionais, ainda que se trate de um órgão auxiliar e reserva do Exército, configura violação à ordem constitucional e democrática com consequente desobediência a orientações nacionais e internacionais de concretização de Direitos Humanos. Como explanado por Sersale Di Cerisano (2013), a efetivação da justiça de transição com o estabelecimento do Estado Democrático de Direito não está limitada a reparar atos violadores cometidos por regimes anteriores, mas também pelo atual sistema que segue com obrigação de obediência aos Direitos Humanos.

4. Observações acerca da segurança pública no Estado de Minas Gerais

Para entender a justiça de transição é necessário considerar que as medidas que devem ser adotadas na busca pela democracia não devem se restringir ao período de transição, a aplicação da justiça de transição não se limita às hipóteses de mudança de regime. É possível que não se trate necessariamente de mudança de regime, mas exista arbitrariedades e violações de direitos humanos no âmbito do próprio governo vigente (SERSALE DI CERISANO, 2013). Assim, a atual situação envolvendo a fase preliminar da persecução penal no Estado de Minas Gerais tem o condão de ilustrar a importância do debate.

Inicialmente, o Sistema Integrado de Defesa Social (SIDS), em funcionamento no âmbito da Secretaria de Estado de Defesa Social (SEDS) do Estado de Minas Gerais, permite a todos os órgãos de segurança pública (Polícia Civil, Polícia Militar e Corpo de Bombeiro Militar) a atribuição para procederem ao registro de fatos criminosos (REDS, procedimento equivalente ao tradicional Boletim de Ocorrência) (http://www.reds.sids.mg.gov.br/). Assim, é possível que qualquer desses fatos sejam registrados em repartição militar, inclusive com condução do preso em flagrante, antes da apresentação à autoridade responsável pela ratificação ou não do flagrante.

Tal conduta é justificada a partir de uma visão instrumentalista pautada, principalmente, na falta de estrutura de pessoal e material de outra instituição exclusivamente receber a demanda. Indubitavelmente o problema existe, não se discute a precariedade e falta de recursos nesse setor da segurança pública. Contudo, a solução harmônica ao Estado Democrático de Direito não parece ser a lógica do “quanto mais melhor” no sentido de, ao invés de haver uma reestruturação dos órgãos com atribuição constitucional com os investimentos que não apenas são necessários, mas são emergenciais, haver atos violadores de normas constitucionais.

Nessa direção, com o mesmo argumento utilitarista supracitado somado à existência de um plantão regionalizado, que não raras vezes obriga extensos deslocamentos por partes dos militares (igualmente o problema é existente e solucionável a partir de investimentos públicos nos respectivos setores de segurança), e o baixo número de servidores da Polícia Civil, iniciou-se o debate acerca da lavratura do Termo Circunstanciado de Ocorrência também pela Polícia Militar[10] [11]. Em um primeiro momento em regiões especificas através de espécies de termos de cooperação entre a Polícia Militar e membros do Ministério Público Estadual e decisões judiciais de primeira instância no que tange a aplicação do procedimento na delimitação territorial da respectiva comarca. Depois, pelo conteúdo da própria Lei Estadual n. 22.257/2016.

A investigação criminal por agente alheio à autoridade policial viola todo sistema legal e constitucional dedicado ao Estado-investigação. Nesta direção, O art. 2º, §1º, da Lei n. 12.830/2013, afirmou que “ao Delegado de Polícia, na qualidade de Autoridade Policial, cabe a condução da investigação criminal por meio de Inquérito Policial ou outro procedimento previsto em lei” (ex.: art. 69 da Lei n. 9.099/95, TCO). Destarte, dentro do contexto policial, representações judiciais de medidas cautelares (ou outras providências investigativas) aptas a restringirem direitos individuais em busca da elucidação de fato criminoso não militar, revela verdadeira aberração jurídica quando não subscritas (ou dirigidas) pelo Delegado de Polícia. Tem-se um ato arbitrário, utilitarista e sem fundamento democrático denotando grave afronta a direitos fundamentais em eventual acolhida pelo Poder Judiciário.

Nesta direção, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (PactodeSão José da Costa Rica, promulgado no Brasil por meio do Decreto n. 678 de 1992) no item 5, do art. 7º, ao tratar do direito à liberdade pessoal, expressa que toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida sem demora à presença do juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais. No caso brasileiro, considerando a organização legal das duas fases da persecução penal (administrativa e judicial), essa autoridade é o delegado de polícia (integrante do Poder Executivo) no exercício de funções judiciais. Assim, à corroborar a possibilidade de uma autoridade administrativa (delegado de polícia) exercer função judicial, o item 6 do mesmo dispositivo internacional analisado, infere que, a decisão da primeira autoridade de garantia poderá ser revista através de recurso dirigido a um juiz (Poder Judiciário), ou seja, a autoridade judicial poderá revisar o ato da autoridade administrativa no exercício de função judicial. Nos países em que essa primeira análise de legalidade da prisão é realizada por um juiz, a Convenção prevê a possibilidade de recurso a um tribunal. Destarte, no sistema processual penal brasileiro, em consonância com convenção internacional, é direito da pessoa presa ser apresentada imediatamente a um delegado de polícia previamente constituído para o ato.

Além da função judicial exercida no ato de apresentação do preso em flagrante, em que o delegado realizará o primeiro juízo de tipicidade do fato, importante destacar que, no curso do inquérito policial existem medidas investigatórias que são decididas exclusivamente pelo Estado-juiz (reserva absoluta) e medidas que são decididas pelo Estado-investigador com posterior controle do Estado-juiz (reserva relativa), denotando que o ordenamento brasileiro adotou o sistema de reserva absoluta e relativa da jurisdição. A jurisprudência brasileira, em consonância com o sistema legal e constitucional de atribuições da Polícia Judiciária, reconhece a legitimidade do delegado em peticionar junto ao Poder Judiciário providências ou medidas cautelares necessárias à eficácia da investigação criminal, sem descartar a possibilidade de parecer opinativo do Ministério Público (TRF-4, A.I. n. 5032332-92.2014.404.0000/RS; TRF-1, proc. n. 1458-22.2013.4.01.3819; STF, RE n. 593.727) (ANSELMO et. al., 2016).

Nesse cenário, em assembleia realizada no dia 11 de janeiro de 2016, o Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado de Minas Gerais (SINDEPOMINAS), dentre outras deliberações, decidiu pela formalização de ofícios à Defensoria Pública e a OAB, solicitando que levem aos Tribunais Internacionais as questões de TCO e solicitações e cumprimento de mandado de busca e apreensão representados pela PMMG, com base na violação de Direitos Humanos e pela elaboração de ofício à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, por violação de Direitos Humanos pela formalização de TCO e representação e cumprimento de mandado de busca e apreensão pela PMMG. Contudo, tais medidas ainda não foram concretizadas.

De acordo com a redação do art. 191 da Lei Estadual n. 22.257/2016, “o termo circunstanciado de ocorrência, de que trata a Lei Federal nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, poderá ser lavrado por todos os integrantes dos órgãos a que se referem os incisos IV e V do caput do art. 144 da Constituição da República.

O citado dispositivo foi vetado pelo Poder Executivo. Contudo, o veto foi derrubado pela ALMG em 8/12/2016 e a lei promulgada com o texto originário. De acordo com a argumentação do Governador do Estado, o termo circunstanciado de ocorrência não é um mero registro de crime, mas um substituto de inquérito policial, em casos de menor potencial ofensivo. Por essa razão, o veto seria necessário, uma vez que a Constituição atribui apenas à União legislar sobre matéria processual.

Neste sentido, o citado art. 191 que confere à Polícia Militar a possibilidade de lavrar termo circunstanciado foi objeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 5637) ajuizada pela Associação dos Delegados de Polícia do Brasil junto ao STF. Em síntese, argui-se a violação de competência privativa da União para legislar sobre processo penal (art. 22, I, CRFB) e a contrariedade da matéria com as atribuições policiais constitucionalmente fixadas (art. 144, §§4º e 5º). Da análise do processo, que ainda se encontra em andamento, verifica-se manifestação da AGU (Advocacia Geral da União) pela inconstitucionalidade do dispositivo questionado[12]; do CONAMP (Conselho Nacional do Ministério Público) requerendo a admissão como amicus curiae e manifestando pela procedência da ADI tendo em vista a inconstitucionalidade do dispositivo questionado; do Conselho Nacional dos Procuradores Gerais dos Estados e da União igualmente requerendo a admissão como amicus curiae com base na relevância e repercussão da matéria; por fim, da ANASPRA (Associação Nacional de Entidades Representativas de Policiais Militares e Bombeiros Militares Estaduais) também requerendo a admissão como amicus curiae, oportunidade em que defende a constitucionalidade do dispositivo questionado (BRASIL, 2017).

Não se pode negar a existência de um ponto que, talvez, esteja realmente atrás das alegações utilitaristas. A desmilitarização, que não pode ser confundida com restrição de direitos de policiais ou desarmamento, é um tema em debate no Congresso Nacional (exs.: PEC 102 e 430). Vários são os fatores, alheios ao objeto do presente estudo, que fomentam a discussão. Pode-se citar o alto índice de homicídios vitimando militares e civis, recomendação da Organização das Nações Unidas, efetivação do Programa Nacional de Direitos Humanos etc.

De outro lado, surge o debate do ciclo completo que autorizaria a execução de todos os atos de polícia administrativa e de polícia judiciária por corporação militar. O aparato militar utilizado para investigar crimes militares seria utilizado também na elucidação de crimes não militares. A legalização do TCO é um importante passo para essa corrente.

Todas as instituições policiais são dignas do mesmo respeito e importância constitucional, assim como os demais órgãos constitucionalmente organizados. A questão é de não se atropelar atribuições e garantias constitucionalmente asseguradas, sob pena de violação do Estado Democrático de Direito e consequente violação a direitos humanos. Não se pode negar a imprescindibilidade do debate acerca da reestruturação do modelo de segurança pública brasileira ou do próprio modelo de polícia. Entretanto, defender a realização do ciclo completo por instituição militarizada, nos moldes atualmente postos, além de irresponsável, denota flagrante violação às noções de devido processo (procedimento) legal com grave afronta a direitos fundamentais. Portanto, a discussão acerca do ciclo completo requer prévio debate sobre o modelo de polícia. Fora disso, usurpação de atribuição constitucional, especialmente referente a medidas limitadoras de direitos, expressa ruptura ao Estado Democrático de Direito.

Referências

ANSELMO, Márcio Adriano; BARBOSA, Ruchester Marreiros; GOMES, Rodrigo Carneiro; HOFFMANN, Henrique; MACHADO, Leonardo Marcondes. Investigação Criminal pela Polícia Judiciária. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2016.

BASSIOUNI, M. Cherif. The Chicago Principles on Post-Conflict Justice. International Human Rights Law Institute, 2007.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta dze Inconstitucionalidade n. 5637/MG. Relator: Ministro Edson Fachin. Ação em andamento. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/processo> Acesso em: 15 de junho de 2017.

JAPIASSU, Carlos Eduardo Adriano; SOUZA, Artur de Brito Gueiros. Justiça de Transição e os fins da pena. Revista Brasileira de Direito. ISSN 2238-0604. Passo Fundo, v. 12, n. 2, p. 207-222, jul/dez 2016.

________; MIGUENS, Marcela Siqueira. Justiça de Transição: uma aplicação dos princípios de Chicago à realidade brasileira. Revista Eletrônica de Direito Penal. ISSN 2318-4892. Brasília, v. 1, n. 1, p. 22-43, junho, 2013.

MADEIRA, Anderson Soares; PEREIRA, Fernanda Moreira Campos; VALE, Sergio Luiz Vasconcelos do. REPARAÇÃO: Principio Fundamental para Efetivação da Justiça de Transição no Brasil Pós Ditadura. Revista Eletrônica de Direito da Faculdade Estácio do Pará. ISSN 2359-3229. Pará, v. 01, n. 02, 2015.

MINISTÉRIO DOS DIREITOS HUMANOS. Observatório do PNDH-3. Disponível em: http://www.pndh3.sdh.gov.br/portal/sistema/sobre-o-pndh3. Acesso em: 15 de jun. 2017.

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SERSALE DI CERISANO, Federico. Justicia transicional en las Américas: el impacto del sistema interamericano. Revista IIDH, v. 57. p. 115-136. Jan/jun, 2013.

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SINDEPOMINAS. Comissão de Prerrogativas. Análise da Resolução Conjunta nº 184/14 que institui protocolo de atuação operacional para registro e tramitação de procedimentos de natureza penal, tais como TCO, APFD e AAFAI. Disponível em: http://www.sindepominas.com.br/noticia/sindepominas-entrega-a-chefia-de-policia-parecer-contrario-a-resolucao-1842014. Acesso em: 15 de jun. 2017.


[1]Delegado de Polícia Civil no Estado de Minas Gerais. Doutorando em Direito pela Universidade Estácio de Sá (UNESA, RJ). Mestre em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá (UNESA, RJ). Especialista em Direito do Estado pela Universidade Federal do Estado da Bahia (UFBA, BA). Graduado em Direito pelo IESUS (BA). Professor de Direito Processual Penal na UNIFG (BA) e na FAVENORTE (MG). Professor nos cursos de pós-graduação da UNIFG/UNIGRAD (BA) e da ACADEPOL (MG). Autor de obras jurídicas.

[2] Como parte das reformas políticas gerais sobre a prestação de contas e garantia da boa governança, os Estados-membros devem combater a corrupção, assegurando a transparência do financiamento, gestão institucional e programas de desenvolvimento relativos à justiça pós-conflito. As organizações internacionais devem servir de modelo para o combate à corrupção e para a transparência na prestação de contas (BASSIOUNI, 2007).

[3] O resultado da justiça pós-conflito é fruto de um processo complexo, multifacetado e interdisciplinar que vai além de uma análise formalmente legal que, não raras vezes, não suprem as necessidades das vítimas, podendo revelar sérias limitações dentro de um governo que enfraquece a fé da sociedade na legitimidade dos processos judiciais. Uma justiça socialmente coerente requer um processo penal em harmonia com ampla estratégia de responsabilização. A história recente mostrou que o reforço da responsabilização e a minimização da impunidade são elementos importantes para a construção de Estados democráticos pós-conflito. Também são essenciais ao estabelecimento do Estado de Direito, ao respeito dos direitos fundamentais e do sofrimento das vítimas, bem como a prevenção da reincidência de futuras violações (BASSIOUNI, 2007).

[4] Os sete Princípios de Chicago sobre Justiça pós-conflito podem ser apresentados da seguinte forma:

Princípio 1 – os Estados-Membros devem processar os supostos violadores dos direitos humanos e do direito humanitário.

Princípio 2 – os Estados devem respeitar o direito à verdade e investigações formais de violações passadas por comissões de verdade ou outros órgãos.

Princípio 3 – os Estados devem reconhecer o estatuto especial das vítimas, garantir o acesso à justiça e desenvolver soluções e reparações.

Princípio 4 – os Estados devem implementar políticas de sanções e medidas administrativas.

Princípio 5 – os Estados devem apoiar os programas oficiais e iniciativas para homenagear as vítimas, educar a sociedade sobre violência política do passado e preservar a memória histórica.

Princípio 6 – os Estados devem apoiar e respeitar os princípios tradicionais, indígenas e religiosas em relação às violações anteriores.

Princípio 7 – os Estados devem apoiar reforma institucional do Estado de Direito para restaurar confiança do público, promover os direitos fundamentais e de apoio boa governança.

[5] Deve haver cooperação entre os Estados no sentido de superarem violações de Direitos Humanos e viabilizar a governança. A reforma institucional deve passar pela reestruturação de setores ligados à segurança, justiça e efetivação de direitos fundamentais. É importante que haja consulta pública com ampla participação das vítimas, suas famílias e comunidades afetadas. O Estado e a sociedade, que também deve ser representada pelas minorias, especialmente aquelas vítimas de violações de direitos, devem se unir em apoio ao Estado de Direito, promovendo direitos fundamentais e restaurando a confiança. O desarmamento deve ser fomentado, com consequente desmobilização dos grupos armados e reintegração social (BASSIOUNI, 2007).

[6] “O Brasil passou, ao longo de sua história, por diversos períodos em que houve a prática sistemática e/ou generalizada de condutas que podem ser classificadas, contemporaneamente, como crimes contra a humanidade. Pode-se fazer referência à escravidão negra e, mais recente, ao período militar, que entre 1964 e 1985, foi responsável por um sem-número de perseguições e da prática de violações graves” (JAPIASSU; SOUZA, 2016, p. 207).

[7] No que diz respeito à Argentina, “a mudança do governo ditatorial para o democrático neste país se deu, consideravelmente, a partir de uma delicada conjugação entre militares e o novo regime. Antes de deixar o governo argentino, a liderança militar editou a Lei nº 22.924, que ficou conhecida como o decreto de auto-anistia. Ela determinou que fossem anistiados todos os delitos cometidos com motivação ou finalidade terrorista ou subversiva ocorridos entre 25 de maio de 1973 e 17 de junho de 1982” (JAPIASSU; MIGUENS, 2013, p. 28).

[8] “Em 19 de março de 1964, no centro de São Paulo, ocorreu a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, que levou milhares de pessoas às ruas e cujos objetivos eram: uma mobilização pública contra o governo de João Goulart; e impedir o estabelecimento do comunismo. No dia 31 de março, tropas saídas de Minas Gerais e São Paulo avançaram sobre o Rio de Janeiro, local em que o governo federal contava com o apoio de setores importantes da oficialidade e das Forças Armadas. Para evitar a guerra civil, Goulart abandonou o país, refugiando-se no Uruguai.

No dia 1º de abril, o Congresso Nacional declarou a vacância da Presidência, tendo os comandantes militares assumido o poder. Em 9 de abril decretou-se o Ato Institucional Nº 1, que cassava mandatos e suspendia a imunidade parlamentar, a vitaliciedade dos magistrados, a estabilidade dos funcionários públicos e outros direitos constitucionais e que viria a ser o primeiro de uma série de atos. Em 15 de abril de 1964, o Congresso Nacional elegeu o general Castello Branco para a presidência da República.

O governo militar estendeu-se até a abertura política de 1985, e foi marcado por autoritarismo, supressão dos direitos constitucionais, perseguição policial e militar, prisão e tortura dos opositores e pela censura prévia aos meios de comunicação. Cinco militares assumiram a presidência do país, sucedendo-se ao longo de 21 anos.

O último presidente da ditadura militar foi o general João Baptista Figueiredo, em cujo governo foi sancionada a lei de anistia. A Lei 6.683, de 28 de agosto de 1979, concedeu anistia a todos aqueles que, no período de 02 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979, praticaram crimes políticos ou conexos. Ela nasceu com um caráter de indiscutível auto-anistia, uma vez que exclui do benefício aqueles que foram condenados pela prática de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal” (JAPIASSU; MIGUENS, 2013, p. 36).

[9] Caracteriza-se pela responsabilização das violações ocorridas e pelo “estabelecimento de um Estado de Direito, o combate à impunidade e o fortalecimento de instituições democráticas” (JAPIASSU; MIGUENS, 2013, p. 24). Tem-se o “comprometimento com uma política internacional de paz, segurança e reconstrução nacional, bem como um movimento global de proteção dos direitos humanos” (JAPIASSU; MIGUENS, 2013, p. 24). “As experiências de transição vividas em determinadas localidades ou nações devem ser compartilhadas onde também se experimente processo semelhante” (JAPIASSU; MIGUENS, 2013, p. 24).

[10] A própria Resolução conjunta SEDS TJMG PGJ DPMG PMMG nº 184, de 25 de abril de 2014 tentou instituir no âmbito administrativo o protocolo de atuação operacional para registro e tramitação de procedimentos de natureza penal, abarcando o Termo Circunstanciado de Ocorrência, Auto de Prisão em Flagrante Delito e o Auto de Apreensão em Flagrante de Ato Infracional, entre outros.

[11] Contra essa resolução, o Parecer 01/2014 da Comissão de Prerrogativas do Sindepominas concluiu que “a Resolução nº 184/14, em que pese ser uma iniciativa que busca a concretude do princípio administrativo da eficiência, visando à economia de gastos dos cofres públicos, viola formal e materialmente a Constituição da República de 1988 e, como se não bastasse, transfere à Polícia Militar várias atribuições da Polícia Civil/Judiciária e, por fim, pretende retornar a esta última atividade há muito realizada pela SUAPI/SUASE e PMMG”. Nessa direção, foi sugerida, aos chefes dos órgãos subscritores da Resolução, a suspensão dos efeitos da medida (SINDEPOMINAS, 2017).

[12] Ementa: Processo Penal. Artigo 191 da Lei n. 22.257 de 27 de julho de 2016, do Estado de Minas Gerais que confere aos integrantes da polícia militar competência para lavrar termo circunstanciado. Vício formal. Ofensa à competência privativa da União para legislar sobre processo penal (artigo 22, inciso 1, da Constituição). A conclusão por sua invalidade formal não seria ilidida ainda que se considerasse que o dispositivo questionado trata de matéria concernente procedimentos em matéria processual (artigo 24, inciso XI e §§ 1° e 4°. da Carta). Violação ao artigo 144. §§ 4° e 5º da Lei Maior. Compete à polícia judiciária lavrar o termo circunstanciado de que cuida a Lei n° 9.099/1995. Precedentes. Manifestação pela procedência do pedido formulado pela requerente.