Posição do Supremo sobre violação de domicílio é prudencial

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Por Ingo Wolfgang Sarlet

 

A despeito de uma enxurrada de críticas assacadas em diversos foros, inclusive no ConJur, a decisão do Supremo Tribunal Federal no RE 603.616 (5 de outubro de 2015), onde se discutiu se e quando policiais podem adentrar domicílios sem mandado judicial com o fito de buscar e apreender drogas, merece mais aplausos do que críticas, salvo que se queira sufragar uma tese de matiz mais extremada, seja da parte dos que endossam tal prática sem maior limitação na hipótese, seja da parte dos que buscam proscrever em caráter absoluto tal possibilidade, desimportando as circunstâncias do caso concreto[1].

Em síntese, o STF, em sede de repercussão geral, definiu que o ingresso forçado em domicílios sem mandado judicial apenas se revela legítimo, em qualquer período do dia (inclusive durante a noite) quando tiver suporte em razões devidamente justificadas pelas circunstâncias do caso concreto e que indiquem que no interior da residência esteja a ocorrer situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade peal, cível e disciplinar do agente ou da autoridade, ademais da nulidade dos atos praticados, decisão proferida por maioria, vencido apenas o ministro Marco Aurélio.

No caso concreto apreciado, de acordo com a descrição dos fatos no noticiário do ConJur “trata-se de pessoa condenada por tráfico em virtude da apreensão de quase 25 kg de drogas  caso envolve um homem condenado a sete anos de prisão depois que a Polícia Federal apreendeu mais de 8,5 kg de cocaína dentro de um carro estacionado na garagem de sua casa. Em 2007, depois de uma denúncia anônima, a PF passou a investigar uma transportadora de Rondônia e decidiu abordar um dos caminhões no momento em que seguia pela BR-364. Foram encontrados na carroceria 11 pacotes com quase 25 kg de droga. O motorista disse que só havia sido contratado para levar o produto até Goiânia, apontando o dono da empresa como responsável pelo fornecimento. Os policiais, sem mandado de busca e apreensão, foram então à casa do proprietário da transportadora, depois das 19h, onde encontraram mais cocaína e sacos de linhagem semelhantes aos flagrados no caminhão. Para o Ministério Público, autor da denúncia, ficou claro que os pacotes estavam guardados com o propósito de venda.”

Representando, em síntese, a posição da maioria, o ministro Celso de Mello sustentou, nos termos do artigo 33 da Lei de Drogas, a configuração de delito permanente na hipótese de manutenção de drogas em depósito, preenchidos os pressupostos do artigo 303 do Código de Processo Penal, de acordo com o qual se considera em situação de flagrância aquele que estiver cometendo crime de caráter permanente. Por sua vez, em seu voto divergente, o ministro Marco Aurélio entendeu não existirem, salvo a palavra do motorista, provas suficientes no sentido de que na casa do condenado existissem drogas e que no caso seria indispensável prévia obtenção de mandado judicial.

Apresentada síntese dos fatos e das principais razões da maioria e do voto vencido, cumpre frisar que em causa está a interpretação do sentido da norma veiculada pelo artigo 5º, XI, CF, “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”, para efeitos de sua aplicação concreta em hipóteses do ingresso forçado em domicílios sem prévia autorização judicial. Dito de outro modo e mais precisamente, na hipótese analisada no caso pelo STF, cuida-se de avaliar a extensão do conceito de flagrante delito como hipótese autorizativa da entrada em domicílios sem mandado judicial de busca e apreensão.

Além disso, trata-se de avaliar se e em que medida o ingresso na esfera domiciliar para apreensão de drogas em determinadas circunstâncias representa uma intervenção restritiva legítima do ponto de vista constitucional ou uma violação do direito fundamental em causa.

Sobre o tema tive ocasião de, em coautoria com Jayme Weingartner Neto, desembargador junto ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e mestre e doutor em Direito, escrever artigo publicado na Revista Democracia e Direitos Fundamentais da Unibrasil, do qual nos permitimos extrair algumas passagens, ainda que vez por outra mediante algum ajuste[2].

Na esteira da decisão majoritária do STF ora comentada, a ilicitude do ingresso forçado na esfera domiciliar tem sido afastada pelo fato de que o tráfico de drogas (ou a posse de arma) configuram crime permanente, pelo que o ingresso dos policiais no interior do imóvel sem a devida autorização estaria juridicamente justificado, quando evidenciado o estado de flagrância.[3] Vale dizer, a (efetiva) falta de mandado judicial para o ingresso na residência não invalidaria a prova obtida, pois o réu estava em situação de flagrante delito, hipótese autorizada pelo artigo 5º, XI, da Constituição Federal, citando-se, inclusive, precedentes do STF (HC 86.082-6) e do STJ (HC 188.195), em abono da tese.

Cremos, todavia, que o critério capaz de deslindar a polêmica é, por óbvio, a verificação da situação fática que autoriza a severa restrição de um direito fundamental — a inviolabilidade do domicílio — que se opera no exercício do poder de polícia, ainda que de boa-fé. Se o contexto probatório não permitir ultrapassar o filtro constitucional/processual-penal, então vão comprometidas as provas da materialidade dos delitos de tráfico, receptação e porte ilegal de arma, por exemplo.

Além disso, quando da redação do artigo referido, adiantamos que o parâmetro a ser aferido, caso a caso, haveria  de ser, sem descurar da natureza permanente do delito de tráfico de drogas (para ilustrar), as circunstâncias da abordagem do caso concreto devem evidenciar “ex ante” situação de flagrância a autorizar o ingresso na residência do réu, durante o dia e, mais ainda, à noite, sem permissão e sem mandado de busca a apreensão.

Com efeito, a CF não proíbe a entrada em casa alheia, ainda que à noite, para fazer cessar prática delitiva, em caso de flagrante — ou desastre, ou para prestar socorro, tudo isso sem determinação judicial (artigo 5º, LXI, CF). O crime de tráfico de drogas (hipótese ora comentada) é permanente, podendo a prisão em flagrante ocorrer, inclusive no período noturno, independentemente da expedição de mandado judicial, determinação judicial que, aliás, só pode ser cumprida durante o dia.

Para além da paráfrase do inciso XI do artigo 5º da Constituição Federal, é de recuperar que a regra é a inviolabilidade do domicílio, restringindo-se a tutela constitucional naqueles casos elencados no próprio dispositivo, que funcionam, então, como elementos excepcionais, como tais devendo ser interpretados e aplicados, sempre em harmonia com o programa normativo, que é de proteção do indivíduo. Vale dizer que, se há limites ao direito fundamental em tela, e há, também há limites para tais limites, de maneira que não reste esvaziado o conteúdo garantista do preceito.[4]

O ambiente vital, que confere horizonte de sentido à ordem jurídica em análise, é o Estado democrático de direito, que procura conciliar os dois corações do atual Estado Constitucional, o princípio majoritário (governo da maioria, com soberania popular), e a proteção aos direitos e garantias fundamentais, inclusive da minoria. Em traço largo, afirmados constitucionalmente os direitos fundamentais, limitá-los e restringi-los é tarefa cometida, a priori, ao legislador e, na dinâmica social, ao Poder Judiciário — em ambos os casos, mediante atenção aos critérios da proporcionalidade, não sendo demais lembrar que a dogmática da proibição de excesso decorre da necessidade de estabelecer parâmetros racionais de controle ao exercício do poder de polícia administrativo, questão datada e localizada nos estados germânicos ao longo do século XIX. Daí a noção de reserva de jurisdição para restrição de direitos fundamentais, nomeadamente as intervenções restritivas do processo penal. A privação da liberdade, a mais intensa intervenção estatal, em face da presunção de inocência, pressupõe trânsito em julgado de sentença condenatória. As exceções, prisão temporária e preventiva, passam, sempre, pelo prévio crivo jurisdicional. O flagrante, pela óbvia inviabilidade de controle anterior — verificado o perigo na demora, por qualquer do povo e mormente pelos agentes estatais no exercício do poder de polícia —, é imediatamente submetido ao juiz.

Importa, portanto, densificar critérios que devem reger a atividade policial (certamente submetida à proporcionalidade e num primeiro momento postos pelo legislador) e no sentido de objetivar o controle judicial, idealmente prévio, às vezes a posteriori, de atuação do Estado-Polícia, sobrecarregado, em nossa sensibilidade, entre deveres de atuação e prevenção na segurança pública, de um lado; e de produção de provas hábeis a instruir a persecução penal, por outro, já que é inteiramente legítima e decorre de um dever geral de proteção a perseguição penal dos delinquentes no interesse da comunidade, sempre, contudo, mediante o respeito às “regras do jogo” prescritas pela CF.

Assim, se a intervenção do juiz em regra deve ser prévia à restrição, cabe-lhe igualmente “o controle da verificação dos pressupostos da situação de perigo na demora no caso de intervenção dos órgãos de investigação em sua substituição”. E há duplo risco de frustração da reserva do juiz de ingerência: (a) transformar a exceção (controle posterior) em regra; (b) emprestar excessiva ambiguidade e vagueza aos parâmetros legais que autorizam as intervenções.

Na esteira dessa premissa é de se voltar os olhos para as tensões fáticas. Em síntese, a inviolabilidade do domicílio é a regra; excepcionalmente, diante de “fundadas razões” (fatos indiciados e delimitados temporalmente), o juiz, previamente, determinará a busca domiciliar, que deve ser feita de dia; ainda mais excepcionalmente, diante do perigo na demora, agente estatal no exercício do poder de polícia, à noite, poderá ingressar na casa de alguém, quando se depare com flagrante delito — nesta última hipótese, a situação deve demonstrar-se com base em fatos concretos, só devendo validar-se a busca domiciliar correlata (que não é consectário necessário do flagrante) quando pudesse ser autorizada, naquelas circunstâncias específicas (avaliadas ex ante), pelo juiz.

Sempre, contudo, que os elementos presentes nos autos não forem suficientes para comprovar a ocorrência de situação de flagrante perceptível do ponto de vista dos policiais, que se encontravam fora da residência do réu, então a conclusão só pode ser pela ilicitude da prova material eventualmente colhida. Assim, reiteramos que o respectivo juízo cognitivo, para ser racional e controlável, só pode aceitar-se ex ante. Tampouco se cogita da licitude da diligência policial para realizar busca domiciliar, nos termos do artigo 240, parágrafo 1º, “a”, do Código de Processo Penal,[5] pois teria que ser previamente determinado pelo juiz.

Nessa perspectiva, é de se repudiar toda e qualquer hipótese em que o ingresso no domicílio é justificado pelos policiais com base em uma situação de mera suspeita (a habitual “atitude suspeita”) e que não encontra suporte em atos concretos, movimentação típica de comercialização de drogas ou pelo menos indicativos disso.

Além disso, tal tipo de diligência policial origina-se possivelmente de premissa inaceitável em nosso sistema constitucional, qual seja, o direito penal do autor, cujo mecanismo, simplificadamente, parte de informes pretéritos, no mais das vezes anônimos, que assentam a etiqueta de que o indivíduo “é” traficante. A seguir, quando aleatoriamente a polícia depara-se com “o” traficante, vislumbra “atitude” suspeita, que autorizaria, neste contexto, busca pessoal.

O que se observa, contudo, é que o marco constitucional-legal aponta via diversa, tendo como pedra angular o direito penal do fato. Assim, não a atitude suspeita, mas apenas “fundada suspeita de que alguém oculte consigo arma proibida ou objetos mencionados” autoriza busca pessoal, na exata dicção do parágrafo 2º do artigo 240 do CPP. Implicando séria restrição da intimidade, direito fundamental (CF, artigo 5º, inciso X), a rigor deveria, no plano ideal, também ser precedida de mandado judicial, mas o perigo na demora, a autorizar a diligência policial, já vai considerado pelo legislador no art. 244, nos casos de prisão, ou de (repete-se a locução) “fundada suspeita” de que esteja na posse de arma ou de outro corpo de delito, ou quando a medida for desdobramento de busca domiciliar.

Assim, a suspeita, para ser fundada, é intuitivo, precisa fundar-se, amparar-se em elementos objetivos — sem descurar nuances subjetivas, desde que externalizáveis (daí o direito penal do fato) —, ainda que indiciados. O foco, nesta hipótese, não seria “o” traficante, mas condutas e atos, minimamente circunstanciados e que, na experiência policial constituem motivação idônea, é dizer, racional, para a ingerência em direito fundamental. Ademais, o pressuposto para a busca pessoal autônoma, sem mandado, é que o sujeito objeto da medida esteja em via pública, salvo prisão e desdobramento de busca domiciliar, bem como, naturalmente, fuga da abordagem, o que pode substanciar “fundada suspeita”.

Quanto à busca domiciliar, a exigência é robustecida, somente sendo deferida quando fundadas razões a autorizem e para as finalidades elencadas nas alíneas “a” a “h” do citado artigo 240 do CPP. A motivação, agora, a par de idônea e racional, é necessariamente concreta e com grau apertado de fundamentação.

Já num terceiro patamar de intervenção, considerando o gravame, assomam os casos de flagrante delito, em que a urgência, o perigo na demora, faz com que o sistema constitucional delegue a qualquer do povo a possibilidade de restringir o direito fundamental de inviolabilidade do domicílio. Se a premência e a emoção da vida real nem sempre permitem juízo prudente e ponderação cautelosa, o mínimo que se exige, pena de esvaziar a garantia, é que a situação de flagrante seja percebida “ex ante” pelo agente que vai operar a ingerência constitucionalmente autorizada. Do contrário, o que se tem são fundadas razões para solicitar mandado de busca domiciliar ou mera suspeita a indicar que se deve aprofundar a investigação. Em nenhum dos casos, todavia, o sistema constitucional autoriza a violação do domicílio.

A descoberta a posteriori de uma situação de flagrante, com o devido respeito aos que pensam diversamente, é mero acasoe não tem o condão de justificar o ingresso compulsório na esfera domiciliar. Da mesma forma, não pode o aleatório subsequente (eventual apreensão de drogas, ou de armas, por exemplo), determinar a licitude de provas produzidas durante intervenção que, à partida, não se amparava em permissivo constitucional.

Importa, portanto, mediante avaliação rigorosa do contexto fático, verificar se há elementos objetivos e racionais a caracterizar, ‘ex ante’, situação de flagrância, na perspectiva do quem está fora da residência, pois não sendo assim desautorizada estava a invasão da casa/domicílio, por qualquer um, aí incluídos os policiais, cujo ingresso, repetimos, autoriza-se apenas nas exceções permitidas pelo preceito constitucional (flagrante delito, desastre, prestação de socorro e cumprimento, durante o dia, de mandado judicial).

Nesse diapasão, a prova colhida sem observância da garantia da inviolabilidade do domicílio é ilícita, não necessariamente porque ausente mandado de busca e apreensão, mas sim, porque ausentes, no momento da diligência, mínimos elementos indiciários da ocorrência do delito cujo estado flagrancial se protrai no tempo em face da natureza permanente e, assim, autoriza o ingresso na residência sem que se fale em ilicitude das provas obtidas ou em violação de domicilio. Acresce que, sendo o perigo na demora vetor decisivo para que o flagrante autorize a entrada no domicílio, nos crimes permanentes a intensidade desta razão diminui, já que, em tese, viável socorrer-se de mandado judicial, diferente da intervenção para evitar-se a consumação de um delito instantâneo, como um homicídio.

Em síntese, a mera informação, de que o réu é traficante, situa-se na esfera das suposições. Da mesma forma, dizer que nos crimes de natureza permanente, tal qual o tráfico de drogas, o estado de flagrante se mantém, o que é dogmaticamente correto, não significa dizer que vaga suspeita de prática de crime de tráfico de entorpecentes coloca o suspeito em estado de flagrância e, assim, afasta o direito à inviolabilidade do domicílio. Diversamente, a situação de flagrante, mesmo de um crime permanente, é dinâmica, e demanda, para sua mínima caracterização, amparo em fatos concretos e atuais, que hão de ser, ao menos, passíveis de exteriorização e individuação.

Assim, à vista do exposto, é possível fazer uma leitura positiva da decisão do STF ora comentada, no sentido de evitar uma lógica do tudo ou nada e de, no âmbito das balizas do sistema jurídico-constitucional, estabelecer parâmetros racionais e justificáveis do sentido e alcance dos comandos constitucionais e legais incidentes na espécie, interpretando adequadamente a condição de flagrância nos crimes de natureza permanente e coibindo abusos nessa seara. De qualquer sorte, é preciso sublinhar que se trata de matéria controversa do ponto de vista jurídico, mas também difícil na perspectiva fática, a demandar uma prudencial análise das circunstâncias do caso concreto, na dúvida sempre pendendo a decisão para uma interpretação restritiva das hipóteses autorizativas do ingresso forçado em domicílio alheio.