Delegado possui função imanente de decisão e de cautelaridade da prova

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Por Ruchester Marreiros Barbosa

O ordenamento Constitucional, ao adotar o sistema acusatório como sistema processual penal norteador da persecutio criminis no Estado Democrático de Direito, atribui ao Estado-investigação, presentado pelo Delegado de Polícia, um feixe de poderes-deveres meios, muitas das vezes de natureza decisória e também cautelar, para consecução da finalidade da investigação criminal, qual seja, a apuração a verdade eticamente construída da infração penal e dos indícios de sua autoria.

A Constituição da República, em conjunto com as normas infraconstitucionais, adotou um sistema de reserva absoluta e relativa da jurisdição, ou seja, na investigação criminal haverá medidas de natureza investigatória que deverão ser decididas exclusivamente pelo Estado-juiz, hipótese de reserva absoluta, e outras medidas decididas pelo Estado-investigador, hipótese de reserva relativa, que passa por um controle posterior do Estado-juiz.

Insta salientar que este controle posterior em algumas vezes será de ofício e em outras ocasiões somente quando provocado, comunicação ao Judiciário esta que, na nossa visão, deve ocorrer imediatamente após a decisão por restrição ou privação de direitos de ir e vir, face ao necessário atendimento ao um sistema de dupla cautelaridade.[1]

Este sistema também é apontado pelo jurista Luiz Flávio Gomes[2], que nos citando em artigo de sua lavra sobre audiência de custódia, deixa clara a sua manifestação pela total constitucionalidade de se reconhecer o poder decisório de liberdade provisória pelo delegado, que possui natureza de contracautela.

Ora, se a liberdade é uma contracautela, isso significa que a prisão em flagrante decidida pelo delegado de polícia tem natureza cautelar. Ou então, em nome da lógica, a liberdade provisória seria uma contra precautela? Não há amparo teórico ôntico-ontológico na teoria geral das cautelares para esta conclusão.

Por uma questão de simples coerência, se a doutrina é uniforme em entender que a liberdade provisória é uma espécie de medida cautelar, ou contracautela[3], não há outra conclusão lógica a de que se o delegado de polícia determina a lavratura do auto de prisão em flagrante e concede liberdade provisória mediante fiança, por exemplo, estaremos diante de duas decisões (e não despacho, por favor) de naturezas cautelares. Seja emanado por autoridade administrativa ou não, o rótulo não altera o conteúdo e a finalidade.

Por oportuno, registramos que a natureza cautelar de atos administrativos não é novidade na doutrina de João Gualberto Garcez[4]:

“O inquérito policial é uma medida complexa, pois é formada por diversas outras medidas, todas direcionadas à sua meta optata: servir de base e apoio a atividades que se desenvolverão em juízo. Não parece, outrossim, que haveria inconveniência em designar o inquérito policial como um procedimento administrativo cautelar.”

Não é por outra razão que defendemos há muito tempo que o delegado de polícia não é uma figura autômata no âmbito da investigação criminal, pois a todo instante exerce função imanente de decidir. E uma das mais importantes, que dá sentido à sua função democrática, além da exclusiva função de investigar, é assegurar que ninguém será levado à prisão ou nela mantido quando por cabível liberdade provisória, ou até mesmo decidir pela não lavratura do auto de prisão em flagrante por estar calçada em prova ilícita, exercendo o papel de verdadeira autoridade de garantias[5], função tipicamente judicial, que não se confunde com a estritamente jurisdicional, segundo interpretação da Corte Interamericana de Direitos Humanos[6].

Há um mito de que todas as garantias fundamentais, para serem afastadas, dependam única e exclusivamente de uma decisão primeira do judiciário, ou seja, uma autorização prévia do juiz para que o Estado-investigação possa empregar seus métodos de investigação para alcançar sua finalidade precípua que é a descoberta da verdade.

Há um equívoco nesta lenda urbana. Nem mesmo nas lições de Canotilho encontramos tamanha leviandade epistemológica.

Não se trata, contudo, de que sustentar que o fundamento na atuação da polícia judiciária seja inteiramente pautada em atos de emergência. Qualquer medida ou mecanismo que vislumbre a reconstrução histórica dos fatos com o fim de se delinear a responsabilidade criminal em sede de investigação criminal é um caminhar para atos invasivos na esfera da intimidade do investigado. Sobre isso não há dúvidas.

A questão é: que desenho constitucional adotamos? Todos os atos de polícia judiciária devem possuir controle prévio do judiciário? Todos são invasivos? Em qual grau se dá esta afetação de direitos e garantias fundamentais?

É evidente que esta coluna não tem como propósito esgotar um tema tão complexo, mas devemos amadurecer nossa doutrina e desvendar contos de fadas. Já estamos em uma faixa etária democrática de que não podemos mais acreditar em papai Noel, nem na fada do dente. Ou seja, não há que se demonizar qualquer ato de Estado. A Autoridade de Polícia Judiciária também possui legitimidade decisória, o que não afasta o controle judicial posterior, sendo a Constituição o norte a ser seguido.

A reposta gira em torno do que se entende por reserva da jurisdição. Nas lições de Canotilho, esta se divide em relativa e absoluta. A distinção, em síntese, consiste em se compreender que na maioria absoluta das vezes a ingerência na esfera subjetiva das pessoas é realizada primeiramente pelo juiz, na qual é garantida a revisão desta decisão no próprio âmbito do judiciário. Trata-se, portanto, do que ele denomina de esfera da primeira e última palavra pelo judiciário. Em outros termos, o judiciário é o primeiro chamado a decidir e o último também, porquanto responsável pela revisão desta primeira decisão.

Já na reserva relativa a ingerência é realizada por outra autoridade pública, podendo ser revisada pelo judiciário. Neste caso a revisão será dará por ato de ofício, por força de lei, ou por provocação do interessado. Vale a pena trazer a colação a explicação do festejado autor Tércio Sampaio, ipsis literis:

 “Esta garantia de justiça tanto pode ser reclamada em casos de lesão ou violação de direitos e interesses particulares por medidas e decisões de outros poderes e autoridades públicas (monopólio da última palavra contra actos do Estado) como em casos de litígios particulares e, por isso, carecidos de uma decisão definitiva e imparcial juridicamente vinculativa (monopólio da última palavra em litígios jurídicos-privados)”[7](Destaque nosso).

Ainda neste mesmo sentido, Luiz Flávio Gomes[8]:

Desde logo é preciso distinguir: uma coisa é a “comunicação telefônica” em si, outra bem diferente são os registros pertinentes às comunicações telefônicas, registros esses que são documentados e armazenados pela companhia telefônica, tais como: data da chamada telefônica, horário, número do telefone chamado, duração do uso, valor da chamada, etc. Pode-se dizer que esses registros configuram os ‘dados’ escritos correspondentes às comunicações telefônicas. Não são ‘dados’ no sentido utilizado pela ciência da informática (‘informação em forma codificada’), senão referências, registros de uma comunicação telefônica, que atestam sua existência, duração, destino, etc. (….)”

A conclusão do estudo em Canotilho nos permite inferir de que a Constituição definirá quais direitos estarão sob a exigência de uma reserva absoluta e quais sob a reserva relativa.

Esta distinção é de suma importância para se delinear o liame dos atos do Estado-investigação como ator da primeira palavra, possuindo o judiciário, sempre, da última palavra. O desafio é traçar os limites ou em que situações qual órgão será detentor da primeira palavra, o Estado-investigação ou o Estado-juiz, já que este exercerá sempre a última palavra, seja de quem for a primeira (delegado ou juiz).

Um dos temas mais polêmicos sobre este limite está na decisão sobre o afastamento da reserva da intimidade sobre a identificação de usuários de telefonia, e seus dados correspondentes.

A este respeito defendemos que o Estado-investigação possui a primeira palavra por se tratar de uma reserva relativa da jurisdição, sendo a absoluta, jungida às hipóteses do conteúdo das relações, mas não seus vestígios, como os dados referentes com quem os interlocutores se comunicaram. É esse o sentido do sigilo das comunicações telefônicas, telegráficas e telemáticas previsto no artigo 5º, XII, CR.

A doutrina já aponta esta interpretação conforme se destaca abaixo:

“Pelo sentido inexoravelmente comunicacional da convivência, a vida privada compõe, porém, um conjunto de situações que, usualmente, são informadas sem constrangimento. São dados que, embora privativos — como o nome, endereço, profissão, idade, estado civil, filiação, número de registro público oficial, etc., condicionam o próprio intercâmbio humano em sociedade, pois constituem elementos de identificação que tornam a comunicação possível, corrente e segura. Por isso, a proteção desses dados em si, pelo sigilo, não faz sentido. ”[9]

Por uma questão de premissa e não de conclusão, ousamos discordar da conclusão do ilustre jurista. Na verdade, esses dados podem estar protegidos pelo sigilo, posto que a ninguém é resguardado o direito de ter acesso a essas informações acaso o usuário não conceda autorização para divulgação de suas informações, seus dados.

No entanto, tais sigilos, em verdade, não estão sujeitos à reserva absoluta da jurisdição, mas sim sob a reserva relativa, o que significa dizer que o Estado-investigação tem o poder-dever de requisitar tais informações no profícuo propósito de identificar os sujeitos (autor, partícipe, testemunhas e vítimas) relacionados ao fato crime.

Ao Estado-investigação é permitido enveredar por medidas invasivas que eventualmente estejam relacionadas ao sopesamento de direitos e decidir qual deles tenha que prevalecer quando a estes direitos não tiverem sido albergados prioritariamente a primeira palavra ao judiciário, como por exemplo a interceptação telefônica, a qual a Constituição definiu como hipótese de reserva absoluta.

No caso da busca e apreensão domiciliar incide tanto a reserva absoluta quanto a relativa de jurisdição, haja vista que o próprio constituinte originário autoriza que a decisão sobre a busca tenha como primeira palavra o Estado-investigação, nas hipóteses delineadas pela concepção do flagrante delito, e, aquelas fora deste contexto, a primeira palavra pertence ao judiciário.

Primeira ou última palavra implica dizer quem definirá a Constitucionalidade ou não desta decisão de determinar a busca e apreensão domiciliar. Nos concentraremos, por limitação de espaço, às hipóteses do Delegado de Polícia como sendo a autoridade que possua esta atribuição.

Veja um exemplo de como funciona a primeira palavra definida pelo Delegado de Polícia, numa hipótese de reserva relativa.

Imagine que seja levado ao conhecimento do Delegado um fato narrado por agentes da autoridade de polícia judiciária, como por exemplo, policiais militares (soldado ao coronel), qualquer do povo, ou agentes da própria polícia judiciária, que conduzem coercitivamente um suspeito de furtar um relógio por vislumbrarem, em tese, situação de flagrante delito. Orientados pela própria vítima, chegaram à casa do suspeito, que não possuía muros, e lá chegando, viram pela janela que o relógio objeto do crime estava no interior da residência em cima da cômoda.

Os agentes, cujo cargo não é exigido formação de bacharel em direito, embora alguns deles possam tê-lo cursado, supondo estar o suspeito em situação de flagrante delito, ingressam na residência, apreendem o bem e conduzem o homem até a presença do Delegado, narrando este fato, bem como narra a vítima que o furto ocorrera somente há duas semanas atrás.

Ora, não há outra resposta senão entender que se trata de uma prova ilícita, pela simples razão de ingresso em domicílio fora de uma hipótese de flagrante delito, haja vista que o crime de furto é instantâneo e a utilização do objeto é mero exaurimento dele.

O Delegado nesta hipótese não poderia lavrar auto de prisão em flagrante. Trata-se de uma situação em que o conduzido coercitivamente, e algemado, por exemplo, será imediatamente libertado por se tratar de uma prisão ilegal, cujas evidências sequer poderão ser utilizadas como prova para evidenciar eventual justa causa para a denúncia e certeza para condenação.

Este exemplo deixa muito claro que foi o delegado de polícia quem decidiu pela não prisão em flagrante e atendeu à constituição da República, que anuncia em seu artigo 5º, LXI, que ninguém será preso senão em flagrante delito. A captura pode ser realizada por qualquer um, mas a detenção e sua manutenção somente o Delegado de Polícia.

Como já dissemos na obra jurídica Diálogos Jurídicos na Contemporaneidade[10], em coautoria com outros juristas, é plenamente pacífico o convívio de medidas cautelares sob a gestão da autoridade de garantias e o monopólio da jurisdição, ou seja, coexistem no ordenamento constitucional mecanismos aptos a ensejar um procedimento investigatório criminal com autonomia e efetividade garantista, nas quais engendram decisões fora da reserva absoluta da jurisdição, sob controle posterior, alcance do real sentido do artigo 5º, XXXV da CR.

Em outras palavras, a reserva absoluta da jurisdição não significa que o Estado-investigação não possa praticar atos de natureza decisória[11], pelo contrário, a Constituição e as normas infraconstitucionais preveem medidas acautelatórias e requisições pela Autoridade de Garantias, v.g. arts. 23, VII, 30 e 31 da Lei 12.527/11, artigo 17-B da Lei 9.613/98, artigo 2º,§2º da lei 12.830/2013 e artigo 15 da lei 12.850/2013, mas que a toda evidência não estão no âmbito de incidência da reserva absoluta da jurisdição. Neste caso, os atos são praticados sem prejuízo do controle judiciário, conforme dispõe o artigo 5º, XXXV da CRFB, mas com fundamento igualmente constitucional, conforme artigo 5º, XXXIII da CR/88.

Não nos deixa mentir recentíssima decisão do STF, da lavra do eminente Constitucionalista, Min. Luís Roberto Barroso por ocasião do julgamento do HC 124322/RS, na qual não deixou dúvidas de que a obtenção direta de dados cadastrais telefônicos pelo Delegado de Polícia não configura quebra de sigilo das comunicações telefônicas.

Ao negar seguimento ao referido habeas, o ministro confirmou jurisprudência da Corte[12], destacando que o fornecimento de registros sobre hora, local e duração de chamadas, ainda que sem decisão judicial, não contraria o artigo 5º, XII, da Constituição da República, que protege apenas o conteúdo da comunicação telefônica. Esta decisão ratificou, no caso concreto, o mesmo posicionamento do STJ[13] e do TRF da 4ª Região[14].

Não há como se negar, doutrinária e jurisprudencialmente, a existência de medidas acautelatórias sob a gestão do Delegado, e se reconhecer o poder geral cautelar administrativo como função imanente à investigação criminal, verdadeiro elemento de democraticidade, verdade e constitucionalidade, para além de um sistema acusatório.

 

Fonte: ConJur